No dia 09 de dezembro de 2021 teve início o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) do recurso interposto pelo Instituto de Advocacia Racial e Ambiental – IARA/RJ e outros, contra a decisão monocrática pela qual o Ministro Dias Toffoli negou o seguimento do Mandado de Segurança (MS) nº 38.018 impetrado em face do Presidente da República e outras autoridades[1].

O MS apontou que o Decreto Legislativo nº 14, de 2021 é ilegal, uma vez “o qual versa sobre o Protocolo Adicional ao Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre a República Federativa do Brasil e a República Portuguesa, que Cria o Prêmio Monteiro Lobato de Literatura para a Infância e a Juventude”[2].
O que propõe o referido Mandado de Segurança?
O MS propõe a adoção, como medida de reparação, em obras da literatura nacional, de uma contextualização acerca dos fatores históricos, epistemológicos, sociológicos e políticos que influenciaram a literatura nacional fundamentados no racismo científico e a eugenia. Vejam só as referências à Tia Anastácia presentes de forma marcante na obra: macaco, urubu, besouro e rinoceronte- relacionados com a cor preta, e atribui-lhes sentidos depreciativos, negativos ou inferiores, o que termina por reforçar os estereótipos racistas.
Antes de explicar as implicações dessa ação jurídica, precisamos retomar um caso mais antigo, que muito provavelmente boa parte do público jovem não conheceu na sua inteireza ou souberam pelo recente destaque dado pela “grande mídia” e pela internet. Trata-se do caso que teve início em 2011, por meio do MS 30.952, que versa sobre a obra “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, sobre o qual já tive a oportunidade de refletir do ponto de vista histórico-jurídico[3].
A eugenia direcionou as políticas do Estado brasileiro desde a proclamação da República, se intensificando na primeira metade do século XX, abarcando da justiça criminal ao planejamento urbano. O médico Raimundo Nina Rodrigues desenvolveu a medicina legal fundamentada no racismo científico, especificamente na teoria do médico italiano Cesare Lombroso, segundo a qual existe o “criminoso nato”. Aqui, os negros foram e ainda são considerados os criminosos natos, sendo este o cerne que estruturou a criminologia brasileira[4], e também a visão esteriotipada e preconceituosa sobre os negros e africanos e todas suas produções culturais[5]. Outro importante exemplo é a implementação de políticas eugênicas na Educação a ponto de constar na Constituição de 1934, em seu artigo 138-b, que deve-se “estimular a educação eugênica”[6].
Monteiro Lobato, que além de literato era também bacharel em Direito, foi membro da sociedade eugênica, defendendo em sua obra a posição racista a favor da eugenia. Além do livro “Caçadas de Pedrinho”, o livro “O Presidente Negro” também testemunha o racismo expresso em seus escritos, sem obviamente retirá-lo do seu contexto. E este não seria um argumento válido, pois a contextualização histórica, social e epistemológica não isenta os sujeitos de suas posições e consequências. Afinal, tais posições nunca foram e não são unanimidades, nem absolutas ou isentas de críticas.
Além disso, a construção da autoestima das pessoas negras brasileiras, sobretudo, das crianças e adolescentes, tem sido historicamente afetada pela representação negativa da negritude, os estereótipos. A educação é um dos campos de perpetuação dessa ordem injusta. Por isso, a proposta dessa ação é promover a desconstrução do racismo a partir das políticas públicas educacionais, considerando a importância dos materiais didáticos.
A Resposta do Conselho Nacional de Educação (CNE) foi publicada no Parecer CNE/CEB 15/2010, adotando a nota explicativa[7]. Contudo, na sequência outro Parecer revogou a medida, não acatando a inserção da nota explicativa, conforme a proposta do MS, o que levou o caso ao STF. O caso é interpretado nesta análise como uma iniciativa de reparação da escravidão, uma vez que destaca entre seus objetivos o reconhecimento do racismo e a busca de sua desconstrução, pautado nos princípios filosófico-jurídicos, presente na Constituição da República de 1988 e na diretriz jurídico-política contemplada no Estatuto da Igualdade Racial. É preciso ir além do combate e da prevenção ao racismo[8], e, sobretudo, atacar diretamente as raízes epistemológicas, entre elas, a da literatura.

O caso “Caçadas de Pedrinho” e o questionamento do MS acerca da criação do Prêmio Monteiro Lobato para a Infância e Juventude têm a mesma fundamentação, a necessidade de dar efetividade às políticas de Educação para as Relações Étnico-Raciais e ao combate ao racismo. Em seu voto, o Relator Ministro Dias Toffoli negou o conhecimento do agravo regimental, condenando os agravantes/autores ao pagamento de multa. de 1% (um por cento) do valor atualizado da causa, consoante disposto no art. 1.021, § 4º, do Código de Processo Civil. A previsão de conclusão do julgamento é para o dia 13 de dezembro deste ano.
Penso que a ausência de um debate mais amplo na sociedade e no sistema de justiça brasileiro acerca do papel do racismo científico e da eugenia na formação social e no Estado brasileiro é o principal fator para a incompreensão sobre a necessidade de abordar as obras literárias no sentido de desconstrução do racismo. Há desde meados do século XX a prevalência de políticas de apagamento e silenciamento desse processo que não é do tempo passado, pelo contrário, está muito presente.
Um dos impetrantes do MS e cientista social Antonio Gomes da Costa Neto, chama atenção para o fato de que “foi a primeira vez em toda a história do STF que se propôs discutir racismo e eugenia”. Contudo, o que se percebe é que há um evidente reducionismo da discussão, às vezes ao tema da liberdade de expressão e outras ao aspecto processual, o que é um equívoco e um retrocesso.
Esse cenário tornou possível a criação do Prêmio Monteiro Lobato. O consagrado escritor eugenista recebe mais reconhecimento e homenagens. Enquanto isso pessoas negras e não negras não podem exigir que as crianças e adolescentes tenham uma educação antirracista e antidiscriminatória, conforme os ditames da Constituição da República de 1988. Até o momento o voto do Relator vai formando maioria, ou seja, recebeu apoio da maioria dos Ministros , que como já dito, não reconhece o recurso.
O que isso significa? Que não admitem a tese de ilegalidade do Decreto, e o faz sem abordar os fundamentos. Quais fundamentos? O que realmente importa, o racismo na literatura e as nefastas consequências na formação humana e a não aplicação das políticas públicas de educação e de combate ao racismo.
[1] Veja o Memorial do caso em: https://www.geledes.org.br/o-memorial-de-cacadas-de-pedrinho-no-supremo-tribunal-federal/. Acesso em: 10 dez. 2021.
[2] Disponível em: https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/1240512348/mandado-de-seguranca-ms-38018-df-0056648-7620211000000/inteiro-teor-1240512355. Acesso em: 11 dez. 2021.
[3] O STF julga “Caçadas de Pedrinho”: escurecendo o equívoco: http://www.gestaouniversitaria.com.br/artigos/o-stf-julga-cacadas-de-pedrinho-escurecendo-o-equivoco. Acesso em: 09 dez. 2021.
[4] GOES, Luciano. A tradução de Lombroso na obra de Nina Rodrigues: o racismo como base estruturante da criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2016.
[5] NASCIMENTO. Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1978.
[6] BRASIL. Constituição de 1934. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1930-1939/constituicao-1934-16-julho-1934-365196-publicacaooriginal-1-pl.html. Acesso em: 15 nov. 2021.
[7] Disponível em: http://portal.mec.gov.br/escola-de-gestores-da-educacao-basica/323-secretarias-112877938/orgaos-vinculados-82187207/15074-ceb-2010-sp-1493348564. Acesso em: 10 dez. 2021
[8] COSTA NETO, Antonio Gomes da. A desconstrução do racismo através da obra de Monteiro Lobato: uma análise do caso “Caçadas de Pedrinho”. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/cadernodeletras/article/view/7338/5125. Acesso em: 10 dez. 2021.