Escrevivência

Falar do racismo todo dia realmente cansa

Um relato sobre a luta diária contra o racismo.

Por Dandara Tonantzin*

Estava no ônibus, voltando de um dia cheio quando encontrei um conhecido. Papo vai papo vem ele solta “mas você só fala de racismo, isso cansa”. Concordei com ele. Cansa mesmo. Imagine você ser todos os dias violentado, maltratado, oprimido e ainda ter que debater, provar que sente essa dor?! Imagine você apanhar, ficar com hematomas, feridas abertas e ainda sim te dizerem “mas não foi bem assim” ou então “fulano não teve a intenção”.

Cansa ter que mostrar como o racismo o opera para quem mesmo pratica. Falar de racismo é invocar toda a dor que mora no meu corpo e na memória da minha pele, é ter que dizer de todas as mazelas, ausências e violências que me atravessam. Para falar do racismo eu preciso dar exemplos, lembrar da vez que arrancaram meu turbante naquela festa de formatura, que me humilharam e nada foi feito, lembrar da vez que um homem disse pra mim que o aeroporto estava virando rodoviária porque tinha gente pobre e preta demais.

Preciso falar do extermínio da nossa juventude, de uma política de segurança que mata negros/as e favelados/as. Preciso falar das 9 mortes durante uma ação policial em Paraisópolis, de Agatha, uma criança de 8 anos atingida com um tiro nas costas, dos 80 tiros no carro, dos quatro tiros na cabeça da Marielle.

Para explicar a crueldade do racismo eu preciso contar que certa vez fui em uma escola da periferia de Uberlândia falar sobre discriminação e uma criança de 10 anos começou a chorar muito, pedi que ela contasse o que estava acontecendo e ela não conseguia falar. No final, chamei ela do lado de fora, e ela começou a contar que tinha ouvido a infância inteira que o cabelo era “Bombril, ruim” e que chegou a ponto dos meninos brancos cortarem um pedaço e ficarem passando na mesa dizendo que estavam limpando. Durantes meses ela pediu para a mãe fazer progressiva (química de alisamento) e elas decidiram fazer aquelas em casa mesmo. Aos poucos ela tirou o capuz e me mostrou que a química havia acabado com o cabelo dela, em alguns lugares caiu, tinha também buracos e feridas na cabeça. Quando fui abraça-la ela puxou a manga da blusa de frio e tinham mais de 10 cortes no braço, cortes que eram daquele dia, da semana passada, do mês passado. Ela me explicou que se cortar era a forma de extravasar aquela dor.

Se eu pudesse escolher nunca falaria de algo que é tão cruel e perverso. Que ceifa sonhos, que mata crianças e extermina em massa nossa juventude. Se eu pudesse escolher colocaria um óculos rosa para enxergar o mundo e as pessoas. Daqueles que deixam tudo coloridamente florido. Na verdade, pensando bem eu já até tentei usar esse óculos, o problema é que os racistas não dão sossego, vira e mexe vem alguém e com algum golpe forte, como o de karate, ou delicado e profundo, como a agulha de acupuntura, e tira esse óculos.

Uma vez que enxergamos como o racismo opera dificilmente voltamos para o lugar da distração ou da cordialidade. É chato mesmo, ter que falar o obvio e ainda assim não ser ouvida.

*Dandara Tonantzin é Pedagoga pela UFU, Mestranda em Educação na UFMG, pesquisa Ciberfeminismo Negro e as Escrevivências. Militante do movimento negro, ativista e filha de Oyá.

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