Num diálogo sobre a alta qualidade de certa geração de cantoras de samba, ao ouvir o guitarrista Pedro Sá levantar o nome de Mart’nália, Caetano Veloso riu e respondeu que ela não contava, porque ela é “o samba em pessoa”. Mais do que um elogio, a frase traz uma constatação. Mart´nalia não é uma “cantora de samba”, no sentido de ser simplesmente uma intérprete que se dedica ao gênero. Na verdade, ela carrega, como poucos, o samba na voz, no corpo, no pensamento, na fala que chia no sorriso, no andar, no modo de existência que defende em cada ato. Na música e fora dela, aposta na alegria como enfrentamento. Encarna em si o tal “grande poder transformador”, “filho da dor” e “pai do prazer”, como o próprio Caetano já descreveu o samba.

O novo álbum da sambista chega pela Biscoito Fino, tem 10 faixas e conta com as participações de Johnny Hooker e Adriana Esteves e já está disponível em varias plataformas digitais.
Nada expõe isso melhor do que o título de seu novo disco: “Sou assim até mudar”. Sendo assim, até mudar, o samba atravessou mais de um século de sofrimento e prazer pra chegar como chega aqui: carregado de Sapucaí e de baile black, de Copacabana e de Salvador, de doença e de vacina, de veneno e de sonho. Mart’nália pura — ou melhor, impura. O álbum traz na sua origem a marca da pandemia e da quarentena.
“Estando em casa, com mais tempo, você começa a se olhar, se dar conta que não sabe quando vai rever seus amigos, que tudo mudou…” lembra Mart’nália. “

“Quando faço um disco, por exemplo, penso em tocar as músicas no show que faço todo verão no Circo Voador. Não ia ter isso agora. Arthur Maia, que sempre começava a pensar meus discos comigo, não está mais aqui (o músico morreu em 2018). Aí você entende que nunca é como era, a vida muda o tempo todo, a gente muda pra continuar o mesmo, ou não, você pode nunca mais ser o mesmo. E tudo bem. Não tem como ficar preso às coisas, às certezas. Então quis fazer um disco sobre isso tudo, mas bem livre, pensando mais na música, no som, pras pessoas ouvirem em casa e serem felizes.”
Filho da dor, pai do prazer. A leveza de que Mart’nália fala se afirma no disco na sonoridade de graves recheados e grooves cheios de suavidade carioca, sob produção de Zé Ricardo, que assina também, ao lado de Mauricio Piassarollo, os arranjos do disco. A afinidade entre o produtor e a cantora atravessa o trabalho:
“Como Arthur, Zé Ricardo entende meu lado black, minha mistura. Fiquei confortável de estar com ele, e de alguma forma, a presença do Arthur esteve nesse nosso encontro” conta Mart’nália.
A troca dos dois se desdobrou naturalmente em Zé Ricardo mostrando composições suas para Mart’nália. Ela reagiu no ato: “Ih, vou gravar essa!”, “Essa também!”. A cantora acabou pinçando duas, uma delas foi o samba “Morena”, que abre o disco e revela de cara um tanto do espírito do disco.
A canção retrata a musa que manda sinais enviesados (“Com a boca pede que eu a esqueça/ Com o olhar me diz eu que eu sou seu dono”) e bagunça a cabeça de quem canta (“sacrifica meu sono”, “me enlouquece”). Mas não há drama, sim uma atmosfera bem humorada que se espalha dos timbres ao balanço. O nó da relação se resolve não com a definição da morena ou de quem sofre por ela, e sim num vitorioso “sou eu quem faz sambas pra você”. O fim é o samba.
“Morena” prepara o terreno para a canção-título. Pontuado pela guitarra de Max Vianna e por um delicioso corinho de “parará”, “Sou assim até mudar”, de Tom Karabachian, é samba romântico na linha do “sei que errei” mas “te prometo ser o seu amor”, misturando pronomes e soando maliciosamente sincero no canto de Mart’nália.
Vale falar também da faixa “Sonho de um sonho”, samba enredo antológico da Vila Isabel de 1980, encerra o disco. Composto por Martinho, Rodolpho da Vila e Tião Graúna, a canção ali dribla o ponto final do álbum e, ao sonhar, aponta para o futuro, ou melhor, o desejo do futuro melhor. Consciente da dureza do real, ela insiste e afirma, em seu último verso: “Mas sonhei”. É disso que é feito o samba, é disso que é feita Mart’nália. Até mudar.