Escrito por Vanilda Santos
Foi muito difícil iniciar a redação deste texto, sobretudo, porque antes de ser colunista do Site Cultura Preta, sou uma mulher negra, neta, filha, irmã, tia, amiga e mãe de homem negro. Homens negros que a cada 23 minutos um é assassinado nesse país, os quais são majoritariamente jovens, e também há mulheres. Segundo o Atlas da Violência 2020[1], 75% das vítimas de homicídio são negras. Na mesma linha, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020[2], atesta que a proporção de pessoas negras nas prisões aumentou 14% nos últimos 15 anos. O recente assassinato de João Alberto por seguranças da rede Carrefour na cidade de Porto Alegre reacendeu os protestos e a divulgação na mídia do “holocausto urbano” que tem ceifado as vidas de pessoas negras desde o primeiro dia após 13 de maio de 1888, em todos os cantos do país. Alguns nomes que tiveram atenção da grande mídia para não esquecermos que João Alberto não foi caso isolado: João Pedro[3] (14 anos, morto enquanto brincava na casa do primo no RJ), Pedro[4] (19 anos, morto por segurança na loja de um supermercado em 2019), Claúdia[5] (morta em 2014, arrastada viva por policiais em uma viatura).
Embora as categorias do direito vigente dificilmente permitam enquadrar como o crime de genocídio, sem dúvida o que ocorre na realidade, é sim um genocídio fundado no racismo que aqui se instaurou, no sentido mais amplo do termo, muito bem abordado por Abdias do Nascimento em seu livro O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Querem eliminar a possibilidade da existência de futuro ao povo negro. Sim, povo negro, embora alguns tenham aderido à negação dessa realidade e ao discurso de que não existe povo negro, e sim povo brasileiro. É preciso esclarecer algumas questões: Por que povo negro? Quem quer nos eliminar? Como fazem?
Povo negro, primeiro porque independentemente da nossa condição social, econômica, espiritual e religiosa, as raízes africanas e a experiência na diáspora nos unem de alguma maneira. Basta lembrar a concepção de ser humano de acordo com a tradição filosófica Ubuntu dos povos bantos, segundo a qual: somos uma completude de nossos ancestrais, os seres viventes (nós) e os seres do futuro (os não nascidos). Não somos seres unicamente individuais, mas uma completude em que ser humano é natureza, que vive em correlação com sua comunidade. Essa dimensão tem sido apagada por aqueles que querem sempre dominar com as correntes mentais e preferem nos ver subservientes a ídolos e instituições, por isso demonizaram nossas raízes. É a estratégia para nos dividir e dominar, pois desde o movimento Abolicionista nos quilombos e nos centros urbanos, os detentores do poder sabem que o povo negro organizado representa um grave perigo.
Quanto a quem interessa nos eliminar, sempre foi uma política do Estado brasileiro no período pós-Abolição. Após o 13 de maio, as elites políticas a serviço das elites econômicas, quando não eram a mesma coisa, criaram os mecanismos para criminalizar, excluir e aos poucos eliminar do cenário da jovem República qualquer sinal do africano e seus descendentes. Os antes senhores de escravos continuaram a ocupar os espaços de decisão, legislando, por exemplo, sobre a propriedade da terra, direitos de ir e vir, direito de participação política, direito à educação, direito à saúde.
Basta revisitar as fontes da história para verificarmos que todos esses direitos foram negados aos descendentes de africanos em nome do projeto de branqueamento da nação, criando a identidade nacional miscigenada, e o mito de que por aqui não existia racismo. Ideia esta ainda muito viva, como pode se perceber na fala do vice-presidente da República Hamilton Mourão. Portanto, não é muito difícil saber quem sempre quis nos eliminar, mesmo que hoje se apresente como o tutelador dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, incluindo os negros.
O Estado Brasileiro ao permitir que instituições e indivíduos atuem livre e impunemente na eliminação de pessoas negras, apresenta-se como o principal coautor desse processo. Não raramente aparece alguém dizendo que isso é identitarismo e “coisa de esquerda extremista”. Não senhores. É questão de sobrevivência e da construção da possibilidade de um futuro, no qual nossos descendentes existam e coexistam.
Como eles fazem? Aqui faço uma breve reflexão sobre o sistema jurídico brasileiro, que alicerçou o sistema econômico escravista, que embasou e ao mesmo tempo camuflou o racismo científico implantado por aqui após a Abolição da escravidão, para na sequência, após a Segunda Guerra Mundial, difundir o mais consagrado direito humano universal “todos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. O avanço dos direitos como escrita formal não alterou a realidade das pessoas negras, descendentes de escravizados, livres e libertos. Mesmo aqueles que por seu próprio esforço conseguiram romper com a lógica de morte e subalternização, não se viram livres do racismo. Muitos não conseguiram se libertar das correntes mentais que foram colocadas para que não tomassem consciência dessa condição imposta, e hoje fazem parte do contingente da negação.
Esse mesmo direito que está positivado na Constituição Federal de 1988, nos Códigos Penais e em leis específicas criou uma maneira de legitimar a seletividade que sempre existiu desde o período escravista. Aboliu-se a escravidão, no entanto enfatizou a existência de cidadãos plenos e os seres humanos quase que irracionais pertencentes às “classes perigosas”, hoje cidadãos de segunda categoria. No Brasil, esses perigosos são as pessoas negras, sobretudo os homens. É por isso que os textos jurídicos são sempre interpretados para proteger os cidadãos plenos, ou “cidadãos de bem”. É simples, façamos uma pesquisa para ver como policiais e seguranças tratam pessoas não negras/brancas em abordagens seja em espaço público, seja em espaço privado. Alguém se lembra da matéria que exibiu o modo como um policial foi humilhado por um morador de um condomínio de luxo que cometia um ato ilícito? É assim com pessoas negras? Nos últimos anos foram diversos assassinatos de pessoas negras por seguranças ou policiais filmados e divulgados. O que as instituições têm feito de fato para mudar isso? Muito pouco, porque adotam as mesmas concepções teóricas e práticas de discriminação, que possibilitam ignorar as reais causas de ações violentas, como as dos assassinos de João Alberto. Esse é o fundamento para uma delegada afirmar que o assassinato de João Alberto não foi um caso de racismo, e assim todos os casos com as mesmas características não são considerados racismo[1]. As leis não são aplicadas do mesmo modo para todas as pessoas, assim como as pessoas são tratadas de modo diferente por instituições e agentes públicos e privados por conta do modo como ela é lida socialmente, se negro ou não.
Vamos tentar entender que teorias são essas com as quais precisamos romper, para tentar acabar com essa impunidade existente no Brasil. Se quer ser racista, que seja, contudo será responsabilizado e punido pelo dano que causar a outra pessoa. O sistema de justiça brasileiro, a envolver todas as instituições que atuam além do Judiciário, as Defensorias, Polícias e o Ministério Público entendem e adotam de forma majoritária unicamente a discriminação direta, ou seja, aquela que o indivíduo expressa de forma evidente através da fala ou da escrita a intenção de discriminar. Ignoram em grande medida que a discriminação racial se manifesta nas estruturas do Estado e das instituições e é transmitida de geração a geração[1] por pessoas, e independe de ser expressamente manifestada.
Em vista disso, entender que um ato como esse tem como causa questões culturais, políticas, estruturais e institucionais, como é o racismo, demanda um maior esforço e vontade para realizá-lo. Soa muito inocente (ou intencional) alguém de fato achar que todos os preconceituosos e os racistas vão vociferar o tempo todo o seu ódio ao sujeito negro, indígena ou ao LGBTIQ+. Esse ódio e desprezo pelas vidas que consideram descartáveis se manifestam por meio da violência, que no caso de João Alberto, foram os socos e a asfixia que o matou. O que mais é preciso para que as autoridades brasileiras responsáveis por colocar em prática os direitos e garantias fundamentais tutelados pela Constituição Federal admitam que faltam ações concretas e efetivas do Estado para além de criar leis? As instituições são compostas por pessoas que as representam, e devem ser responsabilizadas por seus atos e do mesmo modo pela omissão. Não basta o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) se manifestar e propor ações institucionais internas de combate ao racismo, se na vida cotidiana as diversas instituições públicas e privadas através de seus agentes continuam a assassinar impunemente pessoas negras. O Ministério Público Federal (MPF) instaurou Inquérito Civil Público (IC) para apurar racismo estrutural na segurança privada do Rio de Janeiro[1]. Também foi instaurado IC para apurar a fiscalização da Polícia Federal (PF) perante empresas da segurança privada e o caso de espancamento e morte de homem negro em supermercado da rede Carrefour em Porto Alegre[2]. Resta-nos acompanhar para que não resultem apenas em Termos de Ajuste de Conduta (TAC), que muitas vezes em nada contribuem para mudar a realidade das pessoas. É preciso fazer valer o que tanto pregam setores da sociedade inconformados com os protestos do povo negro, segundo os quais “todas as vidas importam”, porque até o momento as “vidas negras importam menos”.

Vanilda Santos é Doutoranda em Direito PPGD/UFSC. Pesquisadora em Teoria e História do Direito, Direito Antidiscriminatório e Relações Étnico-Raciais, Direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais, Filosofia Africana e Afro-diaspórica e Colunista do site Cultura Preta.
[1] Disponível em: http://www.mpf.mp.br/rj/sala-de-imprensa/noticias-rj/mpf-rj-instaura-inquerito-para-apurar-racismo-estrutural-na-seguranca-privada. Acesso em: 24/11/2020.
[2] Disponível em: http://www.mpf.mp.br/rs/sala-de-imprensa/noticias-rs/porto-alegre-rs-mpf-instaura-inquerito-civil-para-apurar-fiscalizacao-da-policia-federal-perante-empresas-de-seguranca-privada-e-o-caso-de-espancamento-e-morte-de-homem-negro-em-supermercado-da-rede-carrefour-em-porto-alegre-rs. Acesso em: 24/11/2020.
[1] MOREIRA, Adilson José. O que é discriminação? Belo Horizonte (MG): Letramento: Casado Direito: Justificando, 2017.
[1] Disponível em: https://tribunadejundiai.com.br/mais/brasil/delegada-diz-que-morte-de-joao-alberto-nao-foi-caso-de-racismo-pai-da-vitima-discorda/?fbclid=IwAR1R5-r9jt_VUleXYAVYYAvhfc3aOvhVvqM2nX98F0szVq83AIRlxjw7M_Q. Acesso em: 24/11/2020.
[1] Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/24/atlas-da-violencia-2020. Acesso em: 24/11/2020.
[2] Disponível em: https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/. Acesso em: 24/11/2020.
[3] Veja-se também: https://www.justificando.com/2020/06/02/de-joao-pedro-a-george-floyd-o-racismo-que-mata/.
[4] Confira em: https://epoca.globo.com/jovem-morto-por-seguranca-em-supermercado-estava-caminho-de-clinica-de-reabilitacao-23457312. Acesso em: 24/11/2020.
[5] Consultar em: https://www.geledes.org.br/tag/claudia-silva-ferreira/. Acesso em: 24/11/2020.