Textos

Nós vamos caminhar até onde o racismo deixar: os limites da democracia

Escrito por Vanilda Santos

Estamos em novembro, na véspera das eleições municipais em todo o país. O exercício do direito ao voto é a principal marca da democracia ocidental, mesmo com a eminente contradição de ser obrigatório no Brasil. Para, além disso, novembro é o mês da consciência negra, que é comemorada pelos movimentos sociais negros. Portanto, é um período imensamente rico para refletirmos sobre a história dos negros, que é em seu sentido mais estrito a história do Brasil, e a tão idealizada democracia.

Em maio de 1988, ano do centenário da Abolição da escravidão do nosso ordenamento jurídico, foram realizadas diversas manifestações pelo país, organizados pelos movimentos negros, com destaque para a que ocorreu no Rio de Janeiro, no dia 11 de maio. A Marcha do centenário denunciou a farsa da abolição, como já feito desde o dia seguinte ao dia 13 de maio, quando foi assinada a Lei Áurea, e a ideia de que teria sido concedida pela Princesa Isabel, “a Redentora”. A figura de zumbi como símbolo da luta pela liberdade aparece na década de 1970, e em 1988 ela é oficializada. A data de seu assassinato foi 20 de novembro, na qual se celebra o dia da Consciência Negra.

Busto em homenagem a Zumbi na Praça do Rosário Uberlândia-Minas Gerais
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Embora a extinção do instituto da escravidão tenha sido um passo importante da luta de escravos, livres e libertos pela liberdade e pela construção da cidadania, o dia seguinte significou total abandono pelo Império e no ano seguinte pela República, uma vez que não houve compensação ou reparação aos ex-escravizados. Nenhuma política pública de inclusão foi implementada, pelo contrário, fomentou-se o branqueamento da população, a imigração e o racismo científico.

A Marcha de 1988 seguiu um trajeto no centro do Rio de Janeiro que objetivava chegar ao panteão de Zumbi de Palmares passando pelo panteão de Duque de Caxias. Os manifestantes foram impedidos de seguir com a manifestação pacífica. Esse acontecimento marcou o que tem sido a trajetória de negros e negras no período pós-Abolição, que caminham e lutam “até onde o racismo deixar”.

A jovem democracia brasileira ainda tem muito a ser melhorada para que possa de fato garantir a todos os segmentos populacionais a cidadania plena efetiva, e não unicamente formal, como prevista nos textos das leis. A história de luta pela liberdade dos negros no Brasil é uma luta constante. Focando no exercício de direitos políticos, que significa participar direta ou indiretamente do governo e da formação do Estado, que no Brasil estão previstos na Constituição Federal como o direito ao voto, a participação em plebiscitos, referendos e iniciativas populares. E desde que se cumpra as condições de elegibilidade também previstas na Constituição Federal e na legislação específica, qualquer cidadão pode se candidatar a cargos públicos eletivos: vereadores, prefeitos, deputados, senadores, governadores e Presidência da República.

Qual tem sido a história da participação efetiva de cidadãos negros na política institucional? De 1881 até 1985 cidadãos considerados iletrados ou analfabetos não detinham o direito ao voto no Brasil. A mudança ocorrida em 1985 estimulou campanhas comerciais com títulos sugestivos, por exemplo, “Não perca o voto do seu eleitor analfabeto”. O analfabetismo permanece como causa de inelegibilidade, conforme previsto na Constituição Federal. Os direitos políticos também foram suspensos durante o regime de exceção da última ditadura civil-militar.

Esses são alguns elementos fundamentais para se entender os motivos pelos quais negros e negras sempre foram sub-representados na política institucional. Na primeira metade do século XX, diversas organizações negras se empenharam em promover a participação dos negros na política, mas o grande entrave era o fato de que a maioria da população negra era analfabeta. Não por acaso, uma das principais pautas de lutas dos negros no pós-Abolição, foi pelo direito à educação como política do Estado. Mesmo assim, não aguardaram passivamente, foram diversas as iniciativas comunitárias para alfabetização da população negra e produção e disseminação de conhecimentos.

25 anos Movimento Negro no Brasil 1980-2005. Brasília: Edição Fundação Cultural Palmares, 2006.
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Mas qual a relação disso tudo com o 15 de novembro que se aproxima? Ironicamente, as eleições municipais deste ano ocorrerão no mesmo dia que se comemora a proclamação da República, esta que se empenhou de todas as formas para eliminar o elemento africano da construção da nação brasileira, e isso implicou obviamente, a exclusão da participação política.

Um dos lemas da Marcha de denúncia de 1988 é muito atual: “nós vamos caminhar até onde o racismo deixar”. Negros e negras conscientes estão se preparando e construindo possibilidades de participarem de fato da política institucional, e de contribuir com a elaboração de políticas públicas equitativas para nossas cidades, além da fiscalização do executivo. Em algumas cidades, estão disputando também o executivo. Contudo, os limites são muitos!

Parafraseando Nelson Mandela, que inspirado por Steve Biko, disse: “Ter consciência é tomar as rédeas da própria história”, negros e negras que assim se identificam, não unicamente pela cor da pele, mas pela consciência de si e de sua história, estão nessa batalha desigual e injusta para reconstruírem essa história política. Muitos fazendo suas campanhas sem nenhum recurso e às vezes com a solidariedade dos amigos ou com parcos recursos de seus Partidos. Seus apoiadores também sonham com um mundo melhor, no qual negros e negras possam exercer de fato suas liberdades e atuarem nos espaços de decisão, e assim, inspirarem os mais jovens a “tomarem as rédeas da política institucional”.

Não haverá democracia enquanto não rompermos com a lógica do “Nós vamos caminhar até onde o racismo deixar”, para que possamos trilhar nossos caminhos com liberdade, incluindo o caminho da política institucional.

Vanilda Santos é Doutoranda em Direito PPGD/UFSC.  Pesquisadora em Teoria e História do Direito, Direito Antidiscriminatório e Relações Étnico-Raciais, Direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais, Filosofia Africana e Afro-diaspórica e Colunista do site Cultura Preta.

Referências

A Marcha e a Farsa. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=y74IDa8KyXc. Acesso em: 11 nov. 2020.

BIKO, Steve. Eu escrevo o que eu quero. Tradução do Grupo Solidário São Domingos.  São Paulo: Ática, 1990.

BRASIL. Dos Direitos Políticos. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/con1988_07.05.2020/art_14_.asp. Acesso em: 11 nov. 2020.

FERREIRA, Yedo. PEREIRA, Amauri Mendes. O movimento negro e as eleições. Rio de Janeiro: Ed. SINBA, 1983.

SENADO FEDERAL. Por 100 anos, analfabeto foi proibido de votar no Brasil. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/11/04/por-100-anos-analfabeto-foi-proibido-de-votar-no-brasil. Acesso em: 11  nov. 2020.

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