
A banda, que veio de terras curitibanas e se apresentou no dia 13/09 no Festival Timbre da cidade de Uberlândia, concedeu uma entrevista a equipe do Cultura Preta. Na conversa, Lio, Lay e Jean nos contam sobre o início da banda, sobre as especificidades de cada álbum, sobre processos de cura e o papel de cada um envolvido neles, e sobre a necessidade política urgente de alinhar tais processos com a busca pela humanidade e subjetividade de pessoas Pretas.
Emerson Soares, Marina Fernandes e Jão Nicomedes
Cultura Preta: Lio e Lay, vocês começam a carreira de vocês cantando juntas no The Voice, e só depois vocês conhecem o Jean e acabam formando Tuyo. Como e quando foi esse encontro?
Lio: Gente, então, a gente na verdade toca juntos há 10 anos os três, eu conheci o Jean quando ele era criança ainda… Tuyo já existia na época do (programa) The Voice, a gente já tinha gravado um disco, bem ‘lo-fizão’ em casa, a gente começou como banda em 2010. (A partir de) 2010, a gente teve esse mon-amie por 05 anos, então a banda é lá de Curitiba, a gente tocava lá, mas a gente toca em mais lugares… e aí a banda se desfez, não conseguia dar conta da faculdade, tava foda. No que passou dois meses a gente fez a Tuyo.
Jean: Não aguentamos ficar sem banda.
CP: Pra Doer é um pouco mais cru, transitando em suas músicas por um som guiado pelo violão. Pra Curar já parece um pouco mais experimental, abraçando até mesmo ares do eletrônico e do beat. Por que esta diferença entre os dois álbuns, e o que demarca essa diferença?
Lio: Eu acho que o Pra Curar é mais ousado porque na época eu recebi o meu FGTS e a gente tinha mais dinheiro pra fazer as coisas (risos), e no Pra Doer a gente tinha mil reais, e aí a gente catou um pouquinho de cada, e aí na verdade a gente só pagou o produtor musical.
Lay: (E no Pra Curar tínhamos) Menos equipamento emprestado também, né!?
Lio: É, a gente tinha menos coisa emprestada. Então é isso, acho que no Pra Curar a gente tinha mais tempo, mas os elementos são os mesmos, a gente sempre tentou organizar de alguma forma um fonograma que contivesse um trabalho mais minucioso e harmonia vocal, deixar o timbre do violão bem em evidência e meter uns beats fudidos, uns graves fudidos. No Pra Doer rola isso, rola em Amadurece e Apodrece, e rola em Conselho do Bom Senso, que é mais suja, mais massa sonora, a gente fez ‘duas-duas’ né: Amadurece e Conselho, Solamento e Candura mais pra dar um sinal, começar a acenar o que a gente queria entregar
Jean: No Pra Doer a gente meio que estava experimentando os lugares que a gente queria andar, sabe!? E no Pra Curar a gente entendia que conseguia fazer, já tinha mais composição e já tinha uma visão mais clara. Rodando também com o Pra Doer deu pra entender aonde a gente podia chegar com segurança.
CP para Jean: Na maior parte das canções, quem assume os vocais são a Lio e a Lays, e o você aparece em poucas. Gostaríamos de saber se, em trabalhos futuros, nós veremos mais vocais seus.
Jean: Eu não vou ficar por aqui (somente com poucos vocais) não, acho que eu tenho que me jogar mesmo, é um desafio assim, eu não tenho muita segurança, as vezes eu fico ‘travadão’, mas eu acho que é se jogando que vai mudando a percepção disso. Mas eu acho que nesse novo disco a gente vai ser um pouquinho mais ousado também em relação a esses vocais.
CP: O Pra Curar tem um ar de superação, mas ele também tem uns tons melancólicos e mais tristes. Vocês acreditam que a cura se dá externando as dores?
Lio: Eu acho o Pra Curar tão derrotista (risos).
Lay: É, eu acho que de cura mesmo só tem o nome, porque o resto que tá ali dentro é bem… Ah, claro que a gente também não vai denominando o que é um processo de cura pra pessoa que ouvir, ou o que vai ser um processo mais doloroso. Mas quando a gente fez, não… (tínhamos essa intenção).
Lio: Posso falar um negócio que outro dia você falou!? Acho que o processo de cura se dá, talvez, pelo movimento de encarar a realidade. Eu acho que ele (o Pra Curar) é um disco muito real, é uma provocação de muitas realidades. Tem as canções que falam sobre relacionamentos afetivos, nenhuma termina bem, não existe… (uma solução). Eu sinto que a gente propõe sempre poesias bastante… não sei se derrotistas, mas bastante sem solução. Me sinto olhando um quadro, descrevendo uma situação de caos. E parece que, se eu escrever sobre ela, eu dou conta de organizar, e falar “aí, tá uma bosta porque é isso” e aí a pessoa faz o que quiser com essa informação. Talvez a parte de superação fica por conta de vocês que escutam, porque é um trabalho em dupla, a gente com vocês. A gente só aperta um botão, e as pessoas que ouvem ressignificam as coisas e a gente só vai pra um novo lugar. Mas é uma parada de que talvez o processo de cura se dê por conta desse estímulo que a gente espera estar gerando de encarar pequenas realidades assim, de não mascarar a realidade.
Jean: É isso, eu acho que a provocação pra olhar e nesse processo de ficar olhando a ferida aberta ali, você começa a observar as coisas e entender porque que aquilo ali tá acontecendo. Acho que isso aí é um processo de cura.
CP: Lio, você menciona em uma entrevista ao GQ que compor uma canção nas condições atuais da indústria da música – e especialmente diante dos dilemas das produções indie – é político, questionando: ‘Se produzir um objeto de arte não fosse mesmo político, você acha que teria tão pouco dinheiro para isso’, e menciona também o poder da diversidade na música, se afastando do elitismo e se aproximando da realidade das pessoas. A crueza das músicas, os desencantos e desabafos, são ferramentas políticas para criar identificação?
Lio: Eu acho que talvez, se a gente for pensar por esse viés que a gente gosta de dicotomizar todas as coisas, talvez seja um jeito menos novelesco de ver as coisas, colocar o positivo em oposição ao negativo… Não acho que encarar coisas reais é uma parada negativa, acho que é não romantizar coisas que são reais. E acho que a gente vem de um lugar social em que coisas sobre nós são muito romantizadas, muito arquetipadas, muito achatadas, dá uma preguiça… E eu sinto que talvez a gente escrevendo sobre complexidades, sobre coisas que não esperam que pessoas como nós escrevam, a gente acaba trabalhando um pouco esse desdobramento da personalidade de pessoas como nós.
CP: Como assim?
Lio: Existe uma expectativa quando uma pessoa negra propõe um objeto de arte. Se a gente consegue conquistar um microespaço pra propor alguma coisa, ou vai ser pelo viés da dor, que é como a gente é retratado, ou vai ser pelo viés do entretenimento. Parece que a gente é incapaz de criar um objeto de reflexão e que a gente é desestimulado a criar estes objetos. Então eu tô falando da minha vida na quebrada que é muito ruim, ou eu tô falando que sambar é muito bom e que eu sou uma morena muito linda. Uma vez me mandaram uma mensagem falando que a gente tinha que escrever sobre ser Preto, eu falei “amigo, eu faço isso todo dia” (risos). E, não sei, eu sinto que quanto mais a gente multiplicar imagens como as nossas, corpos como os nossos, em espaços de complexidade, de nuances de personalidade, acho que menos a gente morre, porque no fim das contas é só sobre isso, sobre a gente ficar vivo e a gente talvez morra tanto, com tanta facilidade, porque existe um processo muito longo de desumanização. A gente é descaracterizado como ser humano, sem sentimento… nossa é um papo longo né!? Tô só jogando as manchetes. Mas eu sinto que as engrenagens racistas no Brasil são muito sofisticadas, e uma das principais delas é de descaracterizar a gente como um ser humano complexo. Então a gente com certeza sente menos dor, a gente é forte, “nossa, guerreira”, então você aguenta muito mais, você é pouco sensível… E essas adjetivações aí que parecem ser super positivas sobre nós na verdade são uma espécie de ferramenta muito inteligente pra dormir tranquilinho enquanto a gente morre. Eu acho que quanto mais a gente multiplicar discursos sobre como nós somos complexos, como nós somos humanos, como a gente experiencia o mundo, seja por esse viés mais existencialista que é o nosso, seja por outro qualquer, de qualquer corrente ideológica, filosófica… acho que mais a gente ganha robustez. Ah, eu tô falando de gerações e gerações pro futuro né, mas acho que a gente opera mais ou menos por aí.
CP: Vocês já fizeram um feat com o rapper Baco Exu do Blues – que também fará um show aqui no Festival – na canção ‘Flamingos’ que compõe o álbum de estreia do artista “Bluesman”. Tem mais alguns feats vindo por aí?
Jean: Tem bastante coisa pra sair esse ano ainda que a gente tá preparando. Tem uma (parceria) que a gente quer muito fazer, e já estamos correndo atrás, que é com o Zion*, que são do Rio de Janeiro.
Lio: Velho, nossa… eles vão revolucionar a canção brasileira.
Jean: acho que eles vão ser os donos do novo R&B, do que é produzido por essa geração. Tem muita referência boa ali, eles são muito talentosos, muito bons, e a gente gostou muito de encontrar com eles, eu queria muito andar mais perto… porque é muito bom receber a energia que eles trazem. E acho que representar isso numa música pode ser legal.
*A equipe do Cultura Preta não encontrou a página oficial do grupo e não se atentou a questionar o trio sobre a referência. Como não queríamos excluir a pergunta do post oficial, a entrevista será atualizada caso mais informações sejam encontradas e o nome artístico for confirmado.
Veja a entrevista completa em vídeo: