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Óbito por Suicídio na Juventude Negra: Reflexão Para Libertação

O Óbito por Suicídio Entre Adolescentes e Jovens Negros construído pelo Ministério da Saúde e pela UNB instiga um olhar sobre a adolescência e a infância, mas também abre espaço para que a discussão sobre saúde mental seja feita por toda a população preta.
O Óbito por Suicídio Entre Adolescentes e Jovens Negros evidencia que, no ano de 2016, a cada 10 casos de suicídio, 06 foram de jovens negros. Imagem: Rep/Revista Raça

A pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde com apoio da Universidade de Brasília nos convida a refletir sobre infância, a formação de meninos e homens pretos em nossa nação, e a necessidade de reconhecimento da saúde mental enquanto pauta que diz respeito a toda a população negra.

Emerson Soares

A pesquisa Óbito Entre Adolescentes e Jovens Negros, construída pelo Ministério da Saúde em conjuntura com a Universidade de Brasília (UNB), traça uma pesquisa realizada em 5 anos, entre 2012 e 2016. O levantamento consegue traçar as alterações nas taxas de suicídio ocorrentes nesse intervalo, com base nos dados do Sistema de Informação de Mortalidade.

O Óbito também se preocupa em pontuar os principais propiciadores da mentalidade suicida entre estes jovens. Na listagem, aparecem a sensação de não-lugar/não-pertencimento, a rejeição, a negligência, dentre outros fatores.

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A necessidade do debate sobre a saúde mental dentro das reflexões do movimento negro tem ganhado cada vez mais espaço. Para além de uma militância combativa ou de uma ocupação premente dos espaços institucionais, o movimento negro tem compreendido as atuações sutis e diluídas do racismo nas vidas e rotinas de negros e negras Brasil afora.

O debate sobre infância que a pesquisa ‘Óbito…’ traz à tona é um debate de fundamental importância para a construção de futuros jovens e adultos negros saudáveis, e também para a reflexão de adultos já formados. A primeira infância e os primeiros momentos da vida são as etapas de mais fácil cooptação e persuasão dos sujeitos, sendo, portanto, um momento da vida no qual os discursos e as percepções dos outros sobre nós mais nos influencia.

Nesse espectro, é nesta fase que muitos de nós, negros, vivenciamos, guardamos e processamos os nossos piores traumas. Nossa cor da pele é apontada, nossos cabelos negativados, e nossa socialização nos demarca enquanto diferentes quando ao redor de pessoas brancas.

Muitas questões estão abrigadas logo na primeira infância. É a partir de um processo de compreensão de si enquanto um sujeito pertencente e participante da sociedade que os sujeitos negros se entendem negros. A sensação de não-pertencimento colocada pelo ‘Óbito…’ é uma sensação que conhecemos de perto.

Ser uma criança ou um adolescente negro dentro de uma sociedade sistematicamente racista insiste em um processo de percepção de si enquanto um ‘outro’ relativo aos padrões, ao belo e ao digno dos afetos – todos estes, concentrados na branquitude. Nesse período da vida, nos entendendo como este ‘outro’, nos percebemos como um corpo e um ser marginalizado e sem direito aos mais diferentes afetos.

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Há também um outro debate dentro da questão do suicídio que envolve a masculinidade negra, também já muito pautada. É extremamente importante para os homens negros que eles, juntos e individualmente, revisitem os seus traumas e pensem sobre si.

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Uma prova disso é o perfil predominante, traçado pela pesquisa, do indivíduo negro suicida, que é pertencente ao sexo masculino, possui entre 15 e 35 anos de idade ou tem mais de 75 anos. Além disso, a pesquisa também revela que, no ano de 2016, o índice de suicídio ocorrente entre jovens negros foi 50% maior do que o índice entre jovens brancos.

A pesquisa nos mostra que a desconstrução da masculinidade pautada por outros movimentos, dentre eles as mais diversas vertentes do Feminismo, precisa também pensar sobre uma vivência da masculinidade atrelada a raça. Este é um assunto que pode ser explorado, com maiores detalhes, em um outro momento.

O fato de que os casos de meninos pretos protagonizam as estatísticas de suicídio dentro da juventude negra revela um atraso e um bloqueio emocional que precisamos desfazer enquanto sociedade e pontuar enquanto pretos. Acredito que as construções de meninos e meninas negras, desde o início da vida, se preocupa no cumprimento de um exercício político constante de sobrevivência e autoproteção diante de uma sociedade racista. E é preciso ter em mente, também, que não se trata sempre, e necessariamente, de uma compreensão militante do ‘ser negro’.

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Muitas famílias negras compreendem as dificuldades colocadas na vida de seus filhos e filhas negras pelo racismo dos e nos mais diferentes espaços. Por cima disso, compreende-se uma função social a ser exercida pelos homens negros, sendo eles coagidos a agirem conforme estereótipos e estigmas racialmente marcados.

As dimensões afetivas e sexuais, muitas vezes, projetam o cumprimento dessa esteriotipação, que os sujeita ao lugar de força, de brutalidade e de animalidade. Fetichização e sexualização são dois comportamentos que entram bastante nesta conta, e que nos levam a uma reprodução dessa leitura até entre nós mesmos. Mas precisamos repensar quantas dimensões de nossas vidas perdemos quando nos submetemos a estas reproduções.

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A necessidade de se provar forte é o que nos acompanha desde nossas infâncias até a nossa formação adulta, e é o que poda nossa subjetividade e nos leva a uma condição de isolamento emocional e dificuldade de exteriorização das nossas fragilidades. Felizmente, o exercício de reflexão e cuidado de si tem sido percebido como essencial e estimulado cada vez mais, sendo também, mesmo que não refletido e racionalizado, um movimento de resistência.

A pesquisa também abre leque para uma transformação de todos os sujeitos negros, das mais diversas faixas etárias. Mobiliza os adultos para uma construção mais responsável e cuidadosa dos jovens negros ao seu entorno. Os mobiliza, também, para uma reflexão das suas próprias adolescências e juventudes, e os traumas e dificuldades nela vivenciados.

Esse processo sugere que o debate emocional não se encerra após a constituição de um sujeito enquanto adulto. Pelo contrário: trata-se de um diálogo que deve continuar constantemente.  Outrossim, mobiliza os jovens negros para o autoreconhecimento e para a reivindicação de suas fragilidades e de suas incertezas.

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Definitivamente, estas estatísticas frias de morte nos evidenciam que o racismo ultrapassa suas manifestações físicas e nos corrói estruturalmente. Além disso, mostram que o exercício constante da saúde mental é uma tarefa a ser cumprida por toda a população negra, na tentativa de retardar os nossos adoecimentos diante das inúmeras dificuldades que já enfrentamos. Reconhecer nossas questões, traumas, afetos, desafetos e lágrimas é, para além de cura, um processo excepcional de libertação de nossas vidas, do mais jovem preto a mais velha mulher preta.

AmarElo é uma produção recente do rapper Emicida, pela gravadora Laboratório Fantasma, junto as artistas Majur e Pabllo Vittar. Lançado em 25 de junho deste ano, AmarElo nos convida a repensar a força que temos e a necessidade de olharmos e expormos nossas cicatrizes, sem deixar que elas nos imobilizem/Rep: Youtube.

Para Saber Mais:

Masculinidade e Afetividade, por Caio Cesar, ColaboAmerica TV: https://www.youtube.com/watch?v=J9eeRzczRKU

Amando Masculinidades Negras, de minha autoria, Medium: https://medium.com/@emersonluiz/amando-masculinidades-negras-379151b9f4c8

Solidão do Homem Negro, por Jão Nicomedes, Cultura Preta: https://culturapreta.wordpress.com/2019/06/25/solidao-do-homem-negro/

P.S.: esses dias, refleti sobre mim mesmo quando era um pouco mais novo, quando tinha 15, 16 anos. Este foi um momento conturbado da minha vida, em que muitas identidades emergiram juntas em um tempo de autoestima baixa. Naquela época, eu ainda raspava o cabelo, e costumo ressaltar como a decisão de deixar o cabelo crescer, bem como deixa-lo totalmente crespo, foi excepcional para a minha autoestima. Mas hoje, quando lembro daquela minha aparência, lembro do auto-ódio que sentia. Lembro de muitas vezes não conseguir olhar para mim mesmo no espelho. Hoje, a reflexão pela qual luto é a de olhar com mais carinho e afeto para o meu eu mais adolescente. De entender este eu como bonito e como alguém digno de amor. Às vezes me lembro de mim e não sei como suportei tantas dores e me odiei tanto. Mas eu olho com carinho para aquele menino, e eu o perdoo.

Eu, com 15 anos/ Rep: acervo pessoal.

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