Nossa humanização é possibilitada pela apropriação da experiência humana acumulada nos instrumentos da cultura. Cada nova geração, começa sua vida no mundo de objetos e de fenômenos que já foram criados pelas gerações anteriores. A experiência individual do ser, por mais rica que seja, não reproduziria, em uma vida, toda formação de raciocínio, pensamento lógico ou abstrato, sistemas conceituais, saberes e aptidões humanas e os produtos materiais, intelectuais ou ideais, acumulados na cultura. (Leontiev)
Antônio da Costa Ciampa escreveu um ensaio de psicologia social, intitulado “A estória do Severino e a história da Severina”, onde concede voz à trajetória de vida de Severina, que em um determinado ponto de sua história, entre os seus 11 e 12 anos de idade, narra:
“Nunca tinha visto uma vassoura, nunca tinha visto um banheiro: a primeira vez que fui lavar a cara – a mulher disse pra eu lavar a cara – quando ela chegou eu estava pegando água da privada para lavar o rosto […] eu fui pegar água lá porque não tinha visto nenhuma nascente, nenhuma fonte.”
Saber que em uma nascente tem água, ou abrir a torneira para pegar água, não é um conhecimento que vem codificado em nossa genética, passamos esse conhecimento por meio da cultura. De criar um satélite à escrever um texto, existem conhecimentos aprendidos na concretude de nossas relações sociais.
As forças produtivas disponíveis no nosso tempo histórico e a forma como nossa sociedade se organiza para produzir e distribuir, por exemplo, comida, moradia, vestimenta, saneamento, energia, etc, vai ser base para determinar quais conhecimentos, habilidades, linguagens, consciência social, leis, religiões, escolas e política desenvolvemos socialmente.
Dentro da sociedade do capital, o humano genérico está constantemente sendo fragmentado em suas particularidades. Existe uma lista de diferenças que pode ser indefinidamente ampliada entre os humanos, porém, não são todas as diferenças que são perseguidas socialmente.
O que faz com que uma particularidade seja assentida ou não na sociedade é o papel que ela desempenha na estrutura de produção, ou seja, tem relação direta com a divisão social de trabalho. O racismo, como ideologia de sustentação do colonialismo: é base estrutural do capitalismo no Brasil.
Combater o racismo não é apenas ponto central, para a construção da emancipação de um humano que se reconheça como pertencente ao todo, mas para devolver o espelho, material e simbólico, para nossas mãos, as singularidades atravessadas pelas questões étnico-raciais. Parte do nosso sofrimento psíquico “não é da ordem da intimidade, ele é político.” (Veiga)
Vamos de lupa aos dados: ” Pelos dados da ONU (Organização das Nações Unidas), em 2017, a população mundial tinha cerca de 7,6 bilhões de habitantes. De acordo com relatório da Oxfam (Oxford Committee for Famine Relief), em 2020, as 62 pessoas mais ricas do mundo tinham a mesma riqueza que as 3,7 bilhões de pessoas mais pobres. E que 1% da população mais abastada, concentrou em suas mãos, pela primeira vez, o equivalente à riqueza dos 99% da população restante. Dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostram que 54% da população brasileira é negra. Segundo o mesmo Instituto, em 2019, a renda média mensal dos trabalhadores pretos equivale a 55,8% da renda dos trabalhadores brancos. Segundo o FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), em 2019, 74,4% das 39.561 vítimas de homicídio eram negros. O índice sobe, para 79,1% quando o autor do assassinato foi um policial. No ano de 2020 o desemprego entre trabalhadores negros é 71% maior do que entre trabalhadores brancos, aponta pesquisa do IBGE; as diferenças nos níveis salariais de cada profissão, na discriminação velada ou manifesta numa seleção de empregos, na grande massa das cidades em estado de semianomia: Na linha da pobreza 32,9% dos trabalhadores negros compõe a parcela de brasileiros que vivem com no máximo US$ 5 por dia. Abaixo da linha da pobreza, o índice sobe para 70% de pessoas negras vivendo com menos de US$ 2 por dia. A recente negação do direito à escolarização e formação universitária para a população negra: em 1837 foi criada a primeira lei de educação onde fica proibido para negros frequentarem a escola, apenas em 2003 o ensino da história do continente africano e da cultura afro-brasileira nos ensinos fundamental e médio dá seus primeiro passos pela Lei 10.633, o estatuto da igualdade racial, Lei 12.888, só foi aprovado em 2010 e a chamada lei de cotas racias e sociais, também conhecida como Lei 12.711, foi admitida somente em 2012. Ligada a esta condição estrutural imposta a muitos de nós, existe uma consciência social racista em vigor na sociedade, que naturaliza nossa superexploração e violência, rejeita e estigmatiza nossos corpos negros.”

Dito isso, cabe o parênteses de que a psicologia é uma práxis social extremamente específica e sem uma atuação política, tanto é incapaz de responder a realidade de exploração e opressão, como historicamente, por vezes, se propôs a justificar as desigualdades, ou a ser solução alternativa para conflitos sociais pela ação profissional (Lacerda).
O racismo impacta de distintas formas a dinâmica singular de cada indivíduo e parte do caminho para reconstrução da nossa emocionalidade negra é possuir rede de relações entre pares, onde seja possível uma concepção positiva a respeito de si, e o branco não seja modelo de identidade, onde não precisemos nos submeter ideologicamente a um padrão hegemônico, onde a experiência de existir não seja um mosaico de exigências e expectativas alienadas (Neusa Santos Souza). E que, nós, pessoas negras, únicas e irrepetíveis, exercendo nossa autonomia, possamos ter um discurso sobre nós e construirmos um olhar descolonizado sobre nós, nossa ancestralidade, nossa espiritualidade, nossa beleza estética, nosso corpo. “Através de uma tentativa de retomada de si e de despojamento” (Fanon)

“Implica estilhaçar as velhas sedimentações culturais, intelectuais e políticas e, mais do que resgatar, criar um senso de valor próprio sobre si mesmo e sobre o povo ao qual se pertence. Pertencemos ao povo que criou a matemática, a filosofia, a medicina, o samba, o jazz, o blues, o rap, o funk, o vogue, o hip hop, as pirâmides do Egito… “Eu sou dádiva, mas me recomendam a humildade dos enfermos” (Fanon, 2008, p. 126).” (Lucas Veiga)
Referências:
Veiga, Lucas Motta. (2019). Descolonizando a psicologia: notas para uma Psicologia Preta. Fractal: Revista de Psicologia. Retirado de: https://doi.org/10.22409/1984-0292/v31i_esp/29000.
Ciampa, Antônio da Costa. (1987). A estória do Severino e a história da Severina. São Paulo: Brasiliense.
Leontiev, Alexei. (1978). O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte.
Souza, Neuza Santos. (1983). Tornar-se negro Ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio De Janeiro: editora Graal.