Textos

Pandemia Covid-19: quando a vida não é prioridade para o Estado

Escrito por Vanilda Santos e Flávio Muniz*

O que me incomoda não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons.

Martin Luther King

Vivemos um tempo sombrio de homens perversos, capazes de considerar aceitáveis e justificáveis mortes que poderiam ter sido evitadas. Segundo os dados de hoje, dia 08 de agosto, são 563.000 óbitos confirmados em todo o país. A maior parte das cidades já liberou a realização de eventos com a exigência de cumprimento de protocolos sanitários. Em Minas Gerais, as novas recomendações passam a valer no dia 15 de agosto e preveem distanciamento mínimo de 1,5 metro entre o público, definem medidas sanitárias e revisam a capacidade máxima de lotação dos espaços, entre outras regras[1].

Mulher com mascara e camisa estampada com a bandeira do Brasil Foto: Reprodução
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Tais exigências protocolares não são suficientes para conter o avanço da disseminação do vírus, da incidência da Covid-19 e, consequentemente, da letalidade. Isso porque o cenário que foi alicerçado desde o início da pandemia criou um caos, do qual não sairemos tão facilmente. A retomada de eventos e das aulas presenciais em cidades cujos índices de contaminação e letalidade só aumentam desde o início de 2021 confirma que nem todas as vidas importam para gestores públicos e parcela significativa da população que, influenciada por discursos nefastos, se recusa a usar máscara e tomar a vacina.

Obviamente, a Covid-19 não escolhe vítima, atinge pobres e ricos, brancos e não brancos são vítimas fatais da pandemia. Mas o que determina o grau de contaminação e letalidade são a exposição ao vírus, as comorbidades e as condições de tratamento. No Brasil, cerca de 68% das vítimas fatais são negras, a maioria homens, embora muitas cidades não façam a classificação considerando o fator étnico-racial.

Os impactos da pandemia para a população negra no Brasil são indiscutíveis, em todos os aspectos, pois os grupos mais vulneráveis são os que ficam mais expostos, sendo que não é coincidência que a primeira vítima tenha sido uma empregada doméstica, uma mulher negra. Nem precisamos dos dados oficiais para sabermos disso, quem de nós, que nos importamos, não tem presenciado ou acompanhado alguém que está nessa situação?

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Faremos algumas considerações a partir de um estudo que estamos realizando sobre a situação da gestão da pandemia. Os apontamentos a seguir nortearam a palestra que foi proferida em uma audiência realizada no dia 03 de agosto na Câmara Municipal de Uberlândia/MG[2].

Percebemos, nas três esferas da Administração Pública, uma falta de articulação, pois a saúde curativa é considerada mais importante que a preventiva. A Covid-19 não tem tratamento precoce, portanto, é um contrassenso inaceitável, do ponto de vista da gestão das políticas de saúde e do direito à vida, promover a disseminação da ideia de tratamento precoce, o que foi e ainda é feito.

Entre os diversos pontos a serem destacados, seguem alguns: a) demora para envio de recursos para estruturação de hospitais e do envio de insumos (equipamentos, medicamentos…); b) ocorreu, em diversos locais, a distribuição de Kit Covid, que se configura como a venda da ideia de que tem remédio preventivo para a doença, contrariando todas as pesquisas científicas até o momento; c) o Estado brasileiro fez campanha contra a vacina de todas as formas. Isso foi uma decisão. Essa visão repercutiu e influenciou a opinião pública de forma muito determinante, como se percebe pelo negacionismo e pela não responsabilização pelas ações irresponsáveis, por exemplo, como não usar máscaras e se recusar a tomar a vacina.

As autoridades públicas têm responsabilidade ao propagarem essa ideia ou se silenciarem. O silêncio é a adesão ao projeto. A manifestação pública tardia não isenta da responsabilidade. Destacamos alguns pontos críticos desse projeto, desde o início declarado da pandemia no Brasil, em março de 2020: não houve estratégia de testagem, rastreamento e vigilância nas três esferas.

A ampla maioria dos municípios só testa casos graves. O rastreamento é importante para saber em quais regiões das cidades está a maioria dos contaminados e, assim, tomar as medidas necessárias para evitar a disseminação, por exemplo, a adoção de lockdown em locais específicos, isolamento e/ou barreira sanitária.

Percebemos que houve a escolha de não se fazer o controle para adotar a imunidade de rebanho, ou seja, a margem aceitável de mortes. Essa é uma opção absurda e perversa dos Poderes Públicos, ao custo de vida de seres humanos. Não foi de forma explícita e literal, mas é de forma tácita. É a negação explícita do nosso direito à vida. É assim que se opera um genocídio e a necropolítica[3], embora o Direito vigente não reconheça que a categoria jurídica “genocídio[4]” abarque a realidade que estamos vivendo. Nenhuma morte evitável é justificável.

Em diversos locais, a mentira que está sendo incutida nas pessoas, por via das Administrações locais, é de que criação de leitos de UTI é a solução, UTI Terapia. Trata-se de uma falácia, porque mais de 80% das pessoas que desenvolvem a forma grave da doença não sobrevivem. A mortalidade só diminui com a redução da contaminação e a vacinação de toda a população. É preciso pontuar também sobre a responsabilização pela doença e pelas sequelas aos sobreviventes. Quem é vítima fatal das sequelas não conta como vítima da Covid-19.

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Uma consequência grave da pandemia e da falta de controle é a desestrutura econômica das famílias. O auxílio emergencial hoje é de 250,00 e não atende às necessidades básicas destas. Além do fato de que os atingidos não são somente as pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade social, mas também as pessoas que não estavam nessa situação antes da pandemia, seja pela perda do emprego ou pela interrupção de sua atividade profissional. Defendemos que a proposta da renda básica universal deveria ser o modelo de auxílio durante pandemia, ou seja, ser disponibilizada de forma mais abrangente, a todas as pessoas que foram atingidas.

Não percebemos preocupação com esse setor em nossa cidade da ampla maioria das Administrações, mas sim com as grandes empresas. Além disso, a queda brusca de orçamentos, ocorrida em diversos municípios, resulta no cenário de abandono das políticas públicas e do cuidado com as pessoas. Essa é uma eficiente forma de discriminação praticada pelas instituições, como fruto das decisões de seus agentes. É disso que fala o Direito Antidiscriminatório, campo do Direito Constitucional que aborda as diversas formas de discriminação, incluindo a institucional.

Muitas Administrações municipais não classificam marcadores étnico-raciais. Seguiram a linha do governo federal, adotando a falsa ideia de neutralidade racial, contrariando, inclusive, a própria legislação sobre as relações étnico-raciais e de combate ao racismo, por exemplo, o Estatuto da Igualdade Racial[5]. É preciso considerar que a grande maioria dos municípios não faz a classificação em nenhuma política pública. Não há interesse dos grupos que ocupam os poderes político e econômico, que majoritariamente propagam a já dita falsa ideia de “neutralidade racial” na produção do direito e das políticas.

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Em 28 de agosto de 2020, foi aprovado, pelo Plenário do Senado (Casa Iniciadora), o PL 2.179/2020[6], de autoria do Senador Paulo Paim, que determina aos órgãos integrantes do Sistema Único de Saúde que registrem dados relativos a marcadores étnico-raciais, idade, gênero, condição de deficiência e localização dos pacientes por eles atendidos em decorrência de infecção pela Covid-19. Até hoje, o projeto tramita na Câmara dos Deputados (Casa Revisora), aguardando parecer do relator na Comissão de Seguridade e Família.

O que revela essa lentidão? A postura conservadora de nossas instituições e da maioria dos legítimos representantes do poder Constituído, os cidadãos brasileiros. Postura que se caracteriza pelo gradualismo e lentidão quando se trata de combater as discriminações e salvar aquelas vidas consideradas sem valor. É a constatação da não eficiência e efetividade das instituições quando a matéria é gestão de políticas públicas que beneficiem, sobretudo, população pobre e negra. Trata-se da não efetivação de direitos e da antidiscriminação.

Nesse cenário, enfatizamos que o termo “Necropolítica” não é só um conceito acadêmico ou um jargão político, mas é real e concreto. Não podemos isentar as Administrações e seus gestores de sua responsabilidade nesse projeto que integra a história de constituição do Estado brasileiro desde 13 de maio de 1888, colocando em prática suas vias de fazer morrer, sem que esteja explícito nas normas.

  • Flávio Muniz é Professor e Historiador. Mestre em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia. Bacharelando em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia. Produtor do Canal Caçador de Histórias. Coordenador na ONG Escola da Vida. Membro e fundador do RAKI – Conselho Independente de Defesa dos Direitos e Justiça para as Pessoas Negras – Uberlândia/MG.

[1] Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2021/07/15/novas-regras-mg-liberar-grandes-eventos-agosto.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em: 05/08/2021.

[2] Audiência Pública “Violências e Negritudes: uma análise geral do genocídio simbólico e real”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3Ef_zXt4gTk&t=3055s. Acesso em: 07/08/2021.

[3] A necropolítica é uma política da morte, de extermínio da população, através do uso deliberado da violência e sujeição dos governados. Veja-se: MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018.

[4] Segundo a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio (1948), Art. II, entende-se por genocídio qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tal como: (a)assassinato de membros do grupo; (b) dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo; (c) submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial; (d) medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; (e) transferência forçada de menores do grupo para outro grupo. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Atos/decretos/1952/D30822.html. Acesso em: 08/08/2021.

[5] Disponivel em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12288.htm. Acesso em: 07/08/2021.

[6] Veja-se em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141723


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