Em março de 2005 eu chegava à Universidade Federal de Uberlândia como aluna regular do curso de graduação em Filosofia. Aquele momento marcou o início da realização de um grande sonho, estudar em uma universidade pública e ser filósofa. Foram tantas as descobertas no campo do conhecimento acadêmico que se abriram pra mim. Dos grandes clássicos da Filosofia ocidental aos teóricos da Educação, da História e do Direito.
Por incrível que pareça, foi na universidade que descobri a existência dos movimentos sociais. Mais tarde, um pouco mais crítica, me atrevi a pensar: se são movimentos sociais eu e minha família não deveríamos conhecer desde sempre lá no nosso bairro? Esse tipo de pergunta simples, me causou certos constrangimentos com alguns dos politizados colegas do movimento estudantil na universidade. Entre os tão discutidos movimentos em meados da primeira década do século XXI, tive meu primeiro contato com o movimento social feminista, e mais tarde, faria minhas primeiras leituras e reflexões sobre as teorias feministas.
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Como todo conhecimento, ao acessarmos, nosso mundo nunca mais será o mesmo. E assim aconteceu. As frequentes abordagens em manifestações públicas e eventos acadêmicos protagonizados por mulheres autodeclaradas feministas, sejam brancas ou negras, o discurso que emanava focava no empoderamento, sororidade, liberdade, igualdade de acesso à remuneração e promoção do mercado de trabalho. E ao mesmo tempo em que essas nobres pautas eram defendidas, ecoava também uma certa autossuficiência que tributava todas as conquistas das mulheres brancas e negras até aquele momento histórico unicamente àquelas que integraram ou integram os movimentos sociais feministas, compreendidos como organizações da sociedade civil.
A minha mente inquieta e curiosa, que naquele momento se aproximava do caos a procura de uma “estrela bailarina”, não tardou a questionar: Como é que minha avó materna Lorinha, que após crescer como a “filha de criação” de uma família de fazendeiros goianos no início do século XX e nada herdar do espólio da dita família, que era a pessoa chave da sua família, aquela que agregava, que organizava, que liderava, que decidia junto com meu avô tudo que dizia respeito à casa e à família composta por seus 15 filhos, não conhecia esse feminismo? Como é possível minhas tias, que romperam com a lógica predominante no interior de Goiás nas décadas de 1950 e 1960, e estudaram para serem professoras, não conheciam o feminismo? Como é possível que minha mãe Glória, que trabalhou desde a infância, e na década de 1980 saía bem cedo de casa para o trabalho que sempre foi fundamental para o sustento de nossa família junto com meu pai, não saiba sobre esse feminismo?
Entendo os movimentos feministas como fundamentais na luta e conquistas de direitos para as mulheres, sobretudo o feminismo negro, que descortinou o racismo, a insuficiência e a exclusão inerentes às concepções ocidentais de feminismo. Contudo, antes de 2005, antes da universidade e de todas as experiências e pesquisas sobre o feminismo, eu conheci, convivi e aprendi com minha avó, minhas tias e minha mãe. Muitas das mulheres que nos antecederam foram também vítimas da violência, do machismo e do racismo, mas sabiam que precisavam preparar o terreno para que nós pudéssemos existir e sermos livres. Foram e ainda são elas que sofrem e lutam contra a criminalização e o assassinato dos seus homens negros, amores, pais, irmãos, sobrinhos, filhos e netos. Sim, são elas as precursoras da liberdade que podemos desfrutar hoje e as detentoras do poder que está em nós desde sempre. E do mesmo modo são a gênese do pensamento enquanto ação prática feminista, conforme a perspectiva da socióloga estadunidense Patricia Hill Collins[1].
Pesquiso as epistemologias e os movimentos sociais feministas e reconheço a sua importância. Mas não posso me omitir e deixar de destacar que ainda hoje, mesmo que esse ponto já tenha sido abordado por importantes pensadoras do feminismo, não é incomum mulheres continuarem considerando que são unicamente os movimentos organizados os sujeitos da história e dos direitos. Foram elas, nossas avós, tias e mães as protagonistas do nosso empoderamento, que nos apoiaram para que nos levantássemos todas as vezes que o racismo e as demais opressões nos abalavam. Portanto, as minhas mais potentes referências feministas são elas!

[1] COLLINS, Patricia Hill. Pensamento Feminista Negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. Tradução Jamille Pinheiro Dias. 1ª edição. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2019. 495 p.