Na segunda parte da teoria de “Mulherisma Africana: Uma Teoria Afrocêntrica”, a intelectual Nah Dove conecta processos culturais de dominação, aculturação e violência a parâmetros raciais, perpassando o caso simbólico e significativo dos Dalits em terras indianas e da caça às bruxas do século XV ao XVIII. Além disso, reflete sobre a participação e protagonismo essencial de mulheres Africanas na perpetuação e solidificação de suas sociedades, bem como seu papel na construção de nossas ancestralidades.
A primeira parte do texto pode ser encontrada aqui.
Os desenhos utilizados para a arte de destaque foram produzidos pela artista Sarah Golish e podem ser encontrados aqui.
Sujeira, Castas e Raça
Um povo pratica sua fé em sua comunidade até que estrangeiros instauram um ambiente de dominação e recriam todos os princípios da crença. Neste novo cenário, de acordo com os novos valores religiosos, o povo anteriormente devoto é o mais sujo e poluído de todos os devotos, tornando-se a escória na hierarquia social.
Esta foi a realidade que foi um produto do ‘encontro’ de estrangeiros arianos com os Dravidianos, população residente, em 800 antes de Cristo, no vale do Indo. Esta era uma região, de acordo com Nah Dove, de encontro dos povos do Norte e do Sul. Bastou um encontro para que o Hinduísmo se tornasse uma religião de lógica racista inquebrantável entre os hinduístas.

Observemos as castas. Separadas por cor, cada casta representa um setor e um grupo social. A mais alta delas, branca, dos brâmanes, representa os sacerdotes. A mais baixa, os próprios Dravidianos, vistos como sujos, degradados, e humilhados – suas almas poluíam a Terra, acreditava-se. Entre uma e outra, estão a casta vermelha e amarela, cada uma também representando grupos sociais.
O texto que institucionaliza essa divisão, intitulado Rig Veda, é o texto de autores arianos que evidencia o seu racismo. Recuperando outros autores, Nah Dove fala não só de racismo, mas do sexismo e da crença do baixo intelecto de mulheres. Utilizando-se dos Dravidianos como exemplo, Nah Dove tece uma crítica da racialidade como um fator insistente nas políticas de dominação ariana, atravessando Oriente e Ocidente: ela recupera, também, a maldição de Cam, passagem bíblica do Catolicismo também colocada em reflexões raciais.
O Feminino, Heresia que Mata
A mulher Africana e as suas realizações em sua comunidade são o epicentro de muitas das sociedades do continente. Suas maternidades e seu papel na vida espiritual são muito valorizados. A maternidade, para além de ser um exercício destinado as mulheres, é uma tarefa do coletivo. A nomenclatura de ‘mãe’ se estende a todos aqueles que contribuem, com carinho, afeto e cuidado, no desenvolvimento das crianças Africanas. É um importante elogio.
Na vida espiritual, as mulheres Africanas aparecem como Deusas. Duas delas, Diana e Isis, etíope e kemética, respectivamente, encontram adoradoras – brancas – no continente europeu. As mulheres brancas do continente teriam encontrado, nas Deusas Africanas, reconhecimentos de valores e possibilidades que não encontravam dentro da sociedade em que estavam. Elas encontraram esta possibilidade devido a manutenção das crenças e práticas Africanas, pelos Africanos, fora do continente.
Muitos receios se implantam na mente dos homens brancos europeus neste momento. O primeiro deles, de que suas mulheres – brancas – revisassem suas atividades e possibilidades na vida social europeia. O segundo deles, de que as mulheres Pretas Africanas na Europa se tornassem símbolos de força e potência, bem como fortalecessem símbolos de negritude.
Uma intolerância que já se repetiu em outras nações e outros momentos históricos se repete aqui. No que Nah Dove compreende como uma ‘tradição europeia’, recuperando Cheikh Diop, a autora observa a prática do assassinato de mulheres brancas (e, possivelmente, de muitas mulheres Pretas) devido ao seu apoio a valores matriarcais.
O Cristianismo, que ganhava maiores forças dentro da sociedade europeia, foi o suficiente para implicar na mente dos homens brancos europeus a presença de ritos e adorações hereges. Este temor foi combustível de dois momentos históricos de campanhas de perseguição: o assassinato de mulheres na Caça Às Bruxas e o de não-cristãos na Inquisição.
Nossos Hérois, Nossistória
Se Nah Dove defende, desde o início de “Mulherisma Africana: Uma Teoria Afrocêntrica”, a importância da recuperação ancestral dos valores, crenças e dos feitos dos povos Africanos, ela não poderia encerrar este grande guia de aprendizados sem o fazê-lo.
Uma sociedade matriarcal preenche os cargos de confiança, liderança e de credibilidade com as suas mulheres. Quem assumiu as lideranças na Etiópia, durante uma invasão romana, em 30 a.C., foram as mulheres Pretas Etíopes. As Candaces eram as figuras femininas governantes. De intelectuais a líderes espirituais, e de militares a governantes, as Candaces foram inteligentes estrategistas nos momentos de dominação, lutando com afinco contra o processo de escravização.

Para além das políticas e das guerreiras, Nah Dove celebra as mulheres mães e as escritoras. Alguns nomes do universo das palavras são: Ifi Amadiume, Niara Sudarkasa, Hazel Carby e Rosalyn Terborg-Penn. Sobre as mães, Nah Dove escreve uma reflexão importante sobre uma força descomunal de mães Africanas com seus filhos no Ocidente, sofrendo os mais diversos medos das possíveis violências que as práticas culturais do lado das Américas poderiam causar aos seus primogênitos.
Ela encerra o postulado utilizando o termo ‘nossistória’, que consiste no esforço da construção cultural, histórica e ancestral das histórias Africanas. Um esforço que reitera a complementaridade entre homens e mulheres, que recupere a noção coletiva e grupal das sociedades Africanas. Assim como nossos vários antepassados atuaram por todos os lados, homens e mulheres Pretos Africanos, na busca da negação de uma realidade ocidental, podemos hoje, homens e mulheres Pretos Africanos e Afrodescendentes, caminharmos em direção a Nossistória.
“Assim, qualquer teoria de libertação Africana futura e contínua e ativismo começa com o esforço para recuperar herstoricamente e culturalmente, a relação complementar da mulher e do homem como a base para ‘nossistória’ e a auto-determinação.“
– DOVE, 1998, p. 20