Quais as respostas criadas por um povo diante de uma opressão sistêmica? Nas terras ocidentais, os processos de imperialismo e de colonização subjugaram as culturas africanas. Em resposta, surge o esforço intelectual de recupera-las e exalta-las – um destes movimentos, realizado por Nah Dove e outras de suas pares, pauta o Mulherisma Africana. Mãe aos 20 anos de idade, Dove traça, em “Mulherisma Africana: Uma Teoria Afrocêntrica”, reflexões sobre a população Preta. Nesta primeira parte de sua obra, a racialização e feminização do mundo, o conceito de unidade cultural e a xenofobia são discutidos pela autora, em diálogo com várias outras e outros.

Emerson Soares
Os desenhos utilizados para a arte de destaque foram produzidos pela artista Sarah Golish e podem ser encontrados aqui.
Herstória e a Racialização do Mundo
Qual o impacto do processo de dominação europeia sobre África e sobre o mundo? Em que consequências este processo implica?
O mundo foi lapidado, historicamente, por uma orientação cultural específica – uma orientação ariana, que subjugou de forma sistêmica a realidade dos países e dos povos do Sul. Esta é a racialização do mundo com que Nah Dove inicia o seu artigo.
A racialização consiste justamente na criação de uma dinâmica global em que a raça se torna um componente ideológico primordial para a consolidação de processos de exploração, cárcere e sequestro que observamos na trajetória dos povos Africanos.

As consequências deste processo são muitas. As vidas Pretas no Ocidente são abaladas e perseguidas por este grande trauma. O resgate cultural e a plantação da semente Africana nas terras coloniais se apresentam como a solução.
E para iniciar a rememoração de seu ponto mais profundo – a valorização do feminino e do matriarcado – surgem a herstória e o Mulherisma Africana como possíveis respostas. Os dois conceitos, que incidem um olhar cirúrgico e específico sobre a realidade mulheres e homens Pretos Africanos e Afrodescendentes no lado das Américas, criam, além de um reajuste histórico, uma atmosfera de resgate coletivo.
Primeiro, exaltar a figura da mulher e do feminino Africano. Segundo, direcionar os homens Pretos ocidentais para este mesmo olhar, fazendo com que se abdiquem de suas construções neste lado do oceano. Todo este movimento é um grande esforço cultural que Nah Dove aponta ter sido a fonte de sobrevivência desta população por todos estes séculos de extermínio. Ainda hoje, se encarrega da mesma relevância.
Unidade Cultural, Nosso Avanço Civilizacional
Não é de hoje que a ideia de simplificar e resumir a África a ‘uma coisa só’ assume um tom pejorativo no debate social. O que várias vezes significou descaso e desinteresse com nossas raízes históricas, bem como uma anulação desumana de nossas individualidades, hoje pode assumir outros tons.
Foi Cheik Anta Diop quem consolidou, com maestria, a ideia de unidade cultural como um importante fator a ser relevado dos povos Africanos. Na sua concepção, unidade não significaria uma repetição incoerente de um sistema de valores, mas uma forte conexão entre os povos e etnias que ultrapassa limitações geográficas. Um continente do tamanho da África com um traço organizacional espalhado por todos os seus cantos exacerbava o nosso senso de Povo.

Nascido na cidade de Thieytou, no centro-oeste de Senegal, Cheikh Anta Diop foi, em vida, historiador, antropólogo, acadêmico das Letras e figura política. Realizou estudos em Paris, onde cursou Matemática e Letras simultaneamente. As teorias de Diop são carros-chefe para o desenvolvimento do pensamento afrocêntrico. Entre as intelectualidades negras, o senegalês é reconhecido pelo desenvolvimento do conceito de unidade cultural no continente africano. Imagem: Rep/Site Coração Africano.
O conceito, operado pelos europeus, sofreu uma distorção e – por que não? –hoje revela os estragos que causa nos amplos debates. A unidade cultural foi um conceito essencial para a ataque sistêmico e para o registro documental da inferioridade dos povos Africanos. Uma repetição, em sua concepção, significava um atraso das mais diversas áreas de conhecimento destas nações.
Sigamos com a escolha sábia de Cheik Diop. Até porque é este mesmo conceito que gera frutos nos movimentos acadêmicos e epistemológicos contemporâneos. A Afrocentricidade e o Pan-Africanismo pressupõem esta escolha, a escolha de nos enxergarmos enquanto um coletivo, promovendo um intercâmbio fortalecido de conhecimentos e uma construção de nossa história Africana em Ocidente. Certamente, o que antes foi um elemento de conquista importante para nações europeias, hoje significa ameaça.
Xenofobia e a Ausência de Responsabilidade Como Estratégia Geopolítica
Toda a teoria de Nah Dove começa partindo de uma ideia principal: existia um berço cultural ao Norte, existia um ao Sul. Em um determinado momento da história, estes berços se encontram. E o resultado do encontro foram as mais diversas violências.
A escravização, e a criação do racismo científico e das ideias de supremacia branca ilustram suficientemente as impressões que saíram destes encontros. Evidentemente, um berço se sentiu superior ao outro. E o Norte, outrora, já havia repetido seu temor do estrangeiro. Nah Dove relembra a Grécia antiga, lugar no qual o assassinato de um estrangeiro era permitido.
“A crença na superioridade branca […] é um componente cultural da lógica europeia. Como Hilliard (1987) afirma, a determinação eurocêntrica da humanidade Africana (que é rebaixada) permite que os europeus neguem a realidade do seu papel histórico na destruição e degradação da África e de seus povos.”
– DOVE, 1998, p.11
A autora atribui o impulso de xenofobia dos povos europeus à uma realidade de escassez de recursos mais ao Norte – um motivo que impulsionaria a agressividade. Uma vez acionada, as campanhas de ódio lideradas por sujeitos arianos que resultaram nos três processos acima mencionados tiveram o mais pleno sucesso. Com a humanidade negada aos povos Africanos, o berço do Norte consegue amenizar e até neutralizar o seu papel histórico na destruição da vida destas pessoas.
Um dos elementos essenciais na política de conquista é conseguir fazer com que seus valores permaneçam mesmo após sua partida física. A superioridade equivocada dos europeus arianos permanece naquilo que Nah Dove chama de aculturação. A perda dos sujeitos Africanos, em Ocidente, de sua relação com as raízes culturais de África, facilita em larga escala a assimilação de valores e preceitos culturais atrelados a Europa.




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